Homem com H - A história de Ney Matogrosso (2025)

Autor: Lucas Pereira

Publicado em: 03/06/2025

Categorias: #crítica #cinema #filme-brasileiro #filme-nacional

Nota: ★★★★★ ( ♥ )

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Existe uma diferença entre imitar alguém e entendê-lo. Homem com H, a cinebiografia de Ney Matogrosso, compreende isso de forma admirável — e o faz não apenas em sua narrativa, mas em cada decisão de linguagem, performance e direção.

Homem com H é um longa que conta a história do cantor Ney Matogrosso, um ícone da música brasileira. O filme começa em 1949 e vai até o início dos anos 1990, buscando representar o protagonista em diversos momentos que construíram a sua personalidade. Dessa forma podemos ver uma história que retrata, de forma apaixonada, os acontecimentos formativos na vida do cantor. 

Além de retratar uma biografia bastante intensa e interessante, o longa possui outros destaques. O mais visível, talvez seja o ator que protagoniza o longa. Jesuíta Barbosa não se parece fisicamente com Ney Matogrosso. Mas isso logo deixa de importar, pois o que vemos na tela não é uma reprodução visual — é uma encarnação sensível, moldada não pela semelhança, mas pelo entendimento do “porquê” de ser. Por trás de cada gesto, existe a compreensão dos modos, maneiras e manias que compõem a personalidade e as motivações do cantor.. É como adaptar um livro ao cinema: não se trata de transcrever a obra audiovisual mostrando linha por linha do que há no livro, e sim de traduzir uma essência. A preocupação do filme é interpretar o Ney, e não reproduzi-lo. O resultado é uma performance que talvez não engane o olho, mas convence o coração.

O diretor Emir Filho conduz o filme com clareza de propósito. Em vez de seguir o caminho batido das cinebiografias musicais — que tantas vezes se perdem em cronologias pautadas por videoclipes — ele opta por um recorte mais íntimo e ousado: mostrar não como Ney construiu sua carreira, mas como sua carreira refletia as fases da sua vida interior. É uma inversão preciosa. Ao invés de perguntarmos “por que Ney cantava tal música?”, nos perguntamos “o que ele vivia quando escolheu cantar essa música?”. O filme responde cruzando, com delicadeza, cada canção a um momento emocional e de avanço do homem que existe fora dos palcos.

A escolha das músicas — entre dezenas de canções que compõem um dos acervos mais marcantes da música brasileira — reflete diretamente o processo criativo do próprio Ney Matogrosso.

Em entrevista ao canal Soul Do Rock, o diretor Emir Filho revelou ter escutado toda a discografia do artista em apenas três dias, selecionando as faixas que o tocavam logo na primeira audição — o mesmo critério que Ney utiliza ao montar seus próprios repertórios.

Essa decisão vai além de um gesto técnico: é uma tentativa de entrar no modo de pensar e sentir do biografado. Em vez de simplesmente narrar sua história, o filme busca compreendê-lo por dentro, usando o mesmo filtro afetivo que orienta suas escolhas artísticas. É um gesto de empatia criativa que revela o cuidado do diretor não apenas com os fatos, mas com a sensibilidade que molda a identidade de Ney Matogrosso.

Homem com H é, também, um filme sobre liberdade — não no sentido ideológico-político, mas no sentido mais pessoal e inquietante: a liberdade de ser quem se é, amar quem se quiser, criar como se deseja. E sobre o preço dessa liberdade. O filme evoca, com maturidade, uma sexualidade aberta e fluida — não apenas quanto ao gênero, mas também quanto à estrutura, à quantidade de pessoas envolvidas ou mesmo na concepção de compromisso como uma questão de afetividade e não de posse. A melhor parte é que tudo isso é levado à tela com naturalidade, sem a necessidade de sublinhar.

Pra mim, o mais bacana é acompanhar o crescimento de uma pessoa e um artista - que no filme são duas entidades separadas - através da compreensão de como viver essa liberdade. Um dos exemplos mais notáveis é quando Ney decide romper com o Secos & Molhados e mergulhar numa fase de reinvenção radical. O fracasso que se segue é tão brutal quanto revelador: Ao tentar provocar pela provocação, trazer os excessos só porque agora tem liberdade para fazer isso, Ney se desliga de si mesmo — e paga o preço. 

Infelizmente, a conclusão desse arco deixa a desejar. Pouco vemos o artista lidar com as consequências das próprias escolhas, e o que poderia ser uma jornada profunda de autoconhecimento se resolve em uma conversa breve — reveladora, sim, mas com aquela síntese mágica que só o cinema permite, ainda que à custa de uma elaboração mais rica. É uma pena, porque esse momento tem um peso simbólico importante: ele mostra que os choques causados por Ney ao longo da carreira não eram fruto de vaidade ou de um desejo mercadológico de ser “diferente”, mas sim a expressão genuína de uma arte visceral, coerente com sua busca por liberdade e autenticidade.

O motivo para essa superficialidade existe, e eu vou abordá-lo mais adiante. Mas vale registrar desde já que esse trecho merecia mais espaço. Ele revela muito sobre quem Ney é, e sobre o que o move.

Essa sensação de incompletude não está isolada. É, na verdade, parte de um conjunto mais amplo de escolhas — ou, talvez, de renúncias forçadas — que comprometem a densidade de alguns trechos do filme. 

A parte sobre Cazuza soa apressada, rasa. O impacto do HIV é tratado com leveza excessiva, como se o corte final — que removeu uma hora do filme, passando-o de 3 horas na primeira montagem para pouco mais de 2 horas na versão que foi ao cinema — tivesse deixado pontas soltas demais. Há diálogos com trocadilhos musicais que soam forçados, especialmente quando tensionam o realismo emocional que o filme constrói tão bem. E os 30 minutos finais parecem correr quando deveriam respirar.

Mas são falhas de acabamento em uma obra que acerta no essencial: ela entende Ney Matogrosso não como ícone, nem como mártir, mas como ser humano. O filme não quer mitificar. Quer compartilhar — e nisso reside sua força. Ao final, sentimos que conhecemos Ney mais do que sabíamos ser possível (em grande parte, porque ele não gosta de compartilhar a sua vida particular, como disse em uma entrevista à Revista Trip, cerca de 10 anos atrás). 

Homem com H não é uma cinebiografia perfeita — e talvez nem queira ser. Em vez de entregar um retrato polido ou completo, o filme escolhe os fragmentos que melhor expressam a alma de Ney Matogrosso. E é justamente nessa imperfeição, nessa recusa em organizar a vida do biografado, que o longa se aproxima da verdade. Ney, afinal, nunca foi um personagem de fácil catalogação. É contraditório, ousado, sensível, provocador. E o filme que o retrata, quando mais acerta, acerta por ser exatamente isso também.

Saí do cinema com a sensação de ter visto menos um filme sobre uma estrela e mais um filme sobre um homem. Um homem que canta, que ama, que se recusa a chorar, que chora, que erra, que tenta. É uma pessoa que não vive para agradar, mas para ser inteira. Por isso mesmo, é tão necessário que existam obras como essa — que olham para seus personagens não de cima, mas de frente. 

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